terça-feira, 30 de março de 2010
Revisitando a infância em Leiria
Aqui era a adega e os celeiros.
Isto é o que resta da casa do Ti Adriano.
Há cerca de sessenta anos, eu vivia numa casa que ficava do lado de lá, desta casa que está na imagem, e que pertencia a um lavrador que se chamava o ti Manel Trinta. Confesso que nunca soube porque razão ele tinha esta alcunha.
Há duas semanas revisitei este lugar e pude verificar que a casa onde vivi já não existe. Foi deitada abaixo e construiram outra no seu lugar.
Com alguma dificuldade reconheci na casa desta imagem acima, a casa do ti Adriano.
Era na altura uma casa cheia de vida e muita actividade.
O ti Adriano era um lavrador próspero, bem sucedido e muito respeitado na zona.Possuia muitas terras que iam deste este espaço junto á casa, até lá para muito longe, junto ao rio.
Havia terras para o milho, para o trigo, para o pasto, para a horta e pomar, para a vinha e o olival.
Recordo que a única fonte que havia na zona, e onde toda a gente ia buscar água, ficava num canavial que era seu.A água brotava da terra logo ali acima e corria formando um pequeno lago onde estava colocada uma telha vermelha que servia de bica para as pessoas encherem os cântaros.
Eu ia lá umas duas ou três vezes por dia buscar água no cântaro de barro, que eu, imaginem, transportava á cabeça, em cima de uma rodilha, que era feita de trapos desfiados e entrelaçados uns nos outros, ficando com uma forma redonda.
Os cântaros soltos, á cabeça, sem mãos, e a caminhar rápido.Como é que não os deixávamos cair?Bom, de vez em quando...lá vinha um ao chão e ficava em pedaços.
O ti Adriano tinha muitos filhos. Talvez uns seis ou sete.Recordo ainda o nome de alguns:
O Adriano que era o mais velho e levou o nome do pai; o Fernando, o Manel, o Luis, o Zé - que era o único que não trabalhava no campo, mas era Factor na Estação dos combóios - o Júlio, e a Maria da Luz, que era a única rapariga e que namorava um homem rico, que tinha uma fábrica de transformação de resina em aguarrás, e que vinha numa grande mota preta, muito brilhante, namorá-la, á quarta-feira á noite e ao Domingo á tarde. Sim, porque nessa altura todos namoravam á quarta e ao domingo, e á porta... ou á janela...ninguém entrava em casa da namorada.
Havia também as "descamisadas", ou "escamisadas" que tinham lugar nas noites quentes de verão, nas eiras(todos os lavradores tinham uma eira)onde se amontoavam as espigas de milho colhidas, para serem limpas da palha que as envolvia(as camisas). Convidavam-se os vizinhos das redondezas para se juntarem na eira, e todos sentados á volta da "montanha" de espigas,iam tirando as camisas e cantando lindas canções populares; contando advinhas e dizendo "graças", no meio de muito riso e muita alegria. No fim do trabalho feito havia um baile na eira,e eram oferecidas bebidas e alguns "comes e bebes". As descamisadas constituiam um momento único e muito especial de convívio e alegria.
Logo de manhã muito cedo, ainda escuro, toda a família ia para o campo trabalhar, só ficava em casa a Maria da Luz que ficava a tratar do almoço e da casa, e a ti Maria que ficava a tratar dos animais.
Lembro-me de estar com eles no campo, eu e os meus irmãos, e assistir-mos ás merendas que a ti Maria lá ia levar. Aí é que era mesmo verdade: Uma sardinha grande, frita, era partida em duas ou três partes iguais, e colocada cada parte sobre uma enorme fatia de brôa, repartindo-as pelos filhos, já homens.
Comiam-se belas azeitonas produzidas na quinta e curtidas por a ti Maria, e bebia-se o bom vinho produzido por eles.
Tinham muito gado: bois, vacas, porcos, um burro,(ou macho?) coelhos, galinhas, dois cães, que estavam presos a uma corrente muito comprida, que por sua vez estava enfiada num longo arame esticado, que ia de uma a outra ponta do pátio, e dois gansos enormes - pelo menos para nós crianças eles eram enormes- e tinham o hábito de correr atrás das pessoas que passavam no caminho, esticando o grande pescoço e ameaçando bicar-nos. Lembro-me que eu tinha sempre receio de lá passar por causa isso.
Creio que os gansos tinham muito o papel de guardas da propriedade.
Havia ainda o Pele de coelho, que era o pavor das crianças das redondezas, inclusivé do meu irmão Serafim e da minha irmã mais nova, a Terezinha.
Era um homem com um aspecto rude e geralmente mal arranjado, que trazia um saco de lona ao ombro e vinha comprar as peles dos coelhos que eram mortos para comer.
Ele ainda vinha longe e já se ouvia:
"Pele de coelho! Pele de coelho! Quem quer vender pele de coelho!"
A miudagem da zona mal o ouvia, ah! pernas para que vos quero!
Toca de fugir para o esconderijo mais próximo.
Isto porque os pais e mães dessa altura, quando os filhos se portavam mal, ameaçavam-nos com os Pele de coelho. Diziam que eles os iam levar no saco.
Um belo dia, o meu irmão ouviu o homem e desatou a fugir e o sítio mais perto para se esconder era no pátio do ti Adriano, logo ali. Entrou por ali a dentro e vendo umas grandes dornas (meias pipas) ali ao lado, saltou para dentro de uma que estava cheia de uvas em fermentação. O que lhe valeu foi estar por ali o Fernando, que vendo-o, o ajudou a sair cá para fora, pois corria o risco de morrer com os vapores fermentados das uvas.
Enfim! Quanta vida e quantas coisas na casa do ti Adriano!
Tantas memórias! Tantas lembranças!
E parece que foi ontem!
Mas a verdade é que já lá vão uns bons sessenta anos!
E, o que resta de tudo aquilo?
Uma parte da casa que ainda está de pé... (era sólida a construção) e o resto é um monte de ruínas, entulho, muros caídos, ervas e silvas a invadirem todo aquele espaço.
Segundo informou um vizinho, a casa "calhou" em partilhas á Maria da Luz, que mora ali perto numa bela vivenda, e que brevemente irá contruir ali naquele espaço, um prédio. Já andaram por lá os técnicos a fazer as medições.
Como diria a Nena, minha querida mãe: "Tudo passa! Tudo tem o seu tempo!"
Voltar às origens, recordar... é viver.
ResponderEliminarbeijooo.
Bela lembranças...realmente tudo passa mas no passar da peneira as recordações como o ouro permanecem vivas!!
ResponderEliminarUm beijo,amiga querida!
Sonia Regina.
Boa noite Viviana
ResponderEliminarfazer a "revisão" de anos passados deixa-nos com alguma nostalgia, mas é bom recordar...
"A memória é o essencial, visto que a literatura está feita de sonhos e os sonhos fazem-se combinando recordações."
( Jorge Luis Borges )
Viviana, desejo uma noite cheia de paz.
Beijos
Olá, Ana linda
ResponderEliminarEu gosto...
Um beijo
viviana
Querida Sónia
ResponderEliminarÉ mesmo, amiga.
" mas no passar da peneira as recordações como o ouro permanecem vivas!!"
E quantas!?
Beijos
viviana
Querida Rosa
ResponderEliminarQuanta nostalgia, amiga!
Mas, mesmo asim...é muito bom recordar.
Beijos
viviana