sexta-feira, 1 de outubro de 2010
Quando morreste - Dra. Maria José Morgado
A Procuradora Dra Maria José Morgado.
Quando tu morreste, as árvores verdes continuaram a bailar na janela do teu quarto de hospital, pequenas luzes na noite gélida.
As asas do desejo, naquele momento irrepetível, podiam transportar-nos para o Guggenheim em Veneza, onde ficaríamos imóveis na contemplação infinita de "O Império das Luzes", de Magritte. Imagino-nos ali presos pela inquietação desta composição, onde a luz e o espírito se sobrepõem paradoxalmente á forma e á materialidade das coisas, como sempre aconteceu contigo, numa vida de insaciável busca de conhecimento, de coragem e de afirmação, que te fazia desprezar a vulgaridade, a cobardia ou o medo.
Quando soubeste da doença grave, disseste-me naturalmente, pelo telefone: "Tenho um carcinoma gástrico. Sempre enfrentámos a vida com coragem e é o que vamos continuar a fazer agora."
Quando ficaste no hospital, entregue a cuidados médicos que, além de incansáveis e eficientes, foram ainda inesquecívelmente carinhosos, aproveitava regularmente a proximidade entre o hospital e a Cidade Universitária para escapatórias de memória construída, na busca inconfessável dum tónico inexistente que pudese salvar-te. Atravessava então a estrada e, lá do outro lado, na Cidade Universitária, encontrava-te novamente, o Zé Luis jovem, forte, saudável, feito de sonhos e de crença na luta por um mundo melhor, como se o tempo já não fosse tempo. Voltava depois ansiosa para junto de ti, a subida aflita das escadas, o cheiro a remédios a matar-me a esperança, o carinho dos médicos e das enfermeiras a comover-me cada vez mais. Falava-te do que tinha visto e respirado, do nosso velho mundo que queríamos mudar, da nossa filha, do que nunca tinha acontecido e era o melhor de tudo.
Quando tu morreste, a noite negra podia estar dentro daquele quadro de Magritte, a prolongar-se naquele clarão intenso, como se, para além do teu corpo destruído pela doença implacável, a tua vontade de viver, a tua espiritualidade combativa e o teu pensamento tivessem derrotado o mal.
A morte para ti foi apenas uma luta paradoxal a travar. Para haver luta, tem de haver morte, disseste-me num desses dias. No dramatismo da partida, entregáste-me a mensagem, numa voz rouca: "Gostei de tudo o que fiz na vida. Fiz tudo o que quis. Fui feliz e amo-vos."
Quando tu morreste, parou bruscamente o ruído do borbulhar permanente da máquina de oxigénio, escoaram-se as últimas gotas de soro e o silêncio esmagou-nos. 1 h15. As enfermeiras perfiladas comovidas, o médico com ar grave junto do teu corpo esquálido a arrefecer rapidamente. Guardei os óculos, o relógio, o telemóvel,subitamente tornados imprestáveis. Guardei o texto da "Justiça Fiscal" misturado com os últimos jornais e meia dúzia de livros. Chegaram entretanto a Laura, o Jorge e o Ricardo. Chorámos.Longamente. As árvores continuaram a bailar bruxuleantes no quadrado cinzento da janela. Entontecidos, percorremos os corredores do hospital feitos de silêncio a diluir-nos devagar na angústia indizível da tua ausência. A felicidade ficara fechada dentro das nossas duas mãos agarradas.
A "Justiça Fiscal" concluída dois dias antes: A tua última felicidade.
Quando tu morreste, sabíamos o que tínhamos aprendido contigo.
A coragem, a dignidade na luta contra a adversidade. Pouco importa se perdemos ou ganhámos. Importa apenas ser digno e nunca, mesmo munca, desistir. Continuarás com os que te eram queridos. No céu, no mar, na noite escura, nos livros que enchem a casa, no carinho que nos deixaste, na recordação do teu sorriso divertido e melancólico, ou em qualquer longo pôr- do-sol junto ao mar, cuja contemplação tanto te fascinava. As tuas cinzas estão lá, como me pediste. No mar.
Lisboa 26/07/2010
Maria José Morgado.
In- José Luis Saldanha Sanches
Edição da Fundação Francisco Manuel dos Santos
Nota:
O Professor Doutor José Luis Saldanha Sanches, faleceu em lisboa - Hospital de Santa Maria - no dia 12 de maio de 2010.
Se quiser saber mais sobre este notável fiscalista leia aqui.
" A sabedoria do peregrino consiste em não chegar depressa ao seu destino mas em apreciar as belezas do caminho"
ResponderEliminarViviana querida um bom e abençoado fim de semana.
Beijinhos cheios de carinho.
Fique bem. Fique com Deus.
Anita (amorfraternal)
Grande depoiamento de amor de Maria José Morgado, aqui lembrado. Eles merecem a homenagem pela honestidade com que sempre viveram.
ResponderEliminarBonito!
Que grande e sentida homenagem a um homem com H grande!
ResponderEliminarSaldanha Sanches. Um lutador incansável pelo princípio da fidedigna aplicação do princípio inalienável de um verdadeiro Estado de direito: Justiça Fiscal.
O que é que vemos e sentimos à nossa volta: Injustiça Fiscal.
Que as suas cinzas possam ajudar a ampliar o som do Mar convocado por Fernando Pessoa na sua «Mensagem»:
"Ó mar salgado
quanto do teu sal
são lágrimas de Portugal
...»
António Nunes
Lindíssima homenagem.
ResponderEliminarBeijo e bom fds.
Um grande Senhor.
ResponderEliminarUma bonita homenagem.
Beijinhos
Bom fim-de-semana
Impressionante este depoimento!
ResponderEliminarQuerida Anita
ResponderEliminarAmiga
Apreciar as belezas do caminho...é comigo!
Um beijo e bom fim de semana
viviana
Querida Mimi
ResponderEliminarO Jorge chegou a casa com o pequeno livro editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, e passou-mo para as mãos e disse: "Vais gostar de ler".
E gostei...gostei mesmo.
Há no livro muitas outras coisas lindas, com interesse.
Admiro e respeito muito este casal.
Um beijo
Viviana
Amigo as-nunes
ResponderEliminarÉ sempre um prazer encontrálo aqui, creia.
Mas que vcomentário lindo que o amigo aqui deixou!
"Que as suas cinzas possam ajudar a ampliar o som do Mar convocado por Fernando Pessoa na sua «Mensagem»:
"Ó mar salgado
quanto do teu sal
são lágrimas de Portugal"
É no belo mar da Ericeira, aqui perto, que repousam as suas cinzas.
Um abraço
viviana
Amigo Manuel
ResponderEliminarCreio que este casal é merecedor.
Obrigada pelas suas palavras de apreço.
Um bom fim de semana também
Um beijo
viviana
Querida Margarida
ResponderEliminarExactamente...um grande semhor.
Lamento que tenha partido tão cedo.
Um beijo
Viviana
Querida Eunice
ResponderEliminarEste texto da Dra Maria José Morgado
comoveu-me.
Achei lindo! Muito lindo!
Vou guardar.
Um beijinho
viviana
E foi assim, estupidamente de facto, a forma como morreu...
ResponderEliminarhttp://www.fernandodenoronhaandrade.com
Seria bom que a nossa Maria José Morgado se tivesse cruzado no caminho da mãe da minha filha, então o desfecho dessa história poderia ter sido bem diferente. Será que pela sua mão, alguma coisa ainda poderia ser feita.
PRESTEM ATENÇÃO, NUNCA SE SABE QUANDO MAIS ALGUM CONHECIMENTO PODERÁ FAZER TODA A DIFERENÇA,NÃO MORRAM NEM PERMITAM QUE CONDUZAM Á MORTE AQUELES QUE AMAM!!