Os nossos filhos cresceram juntos, num tempo em que a rua dava para jogar á bola, jogar “á macaca”, andar de bicicleta, jogar ás escondidas, correr, saltar, etc. etc., e não estava cheia de carros estacionados como hoje acontece.
Lembro-me, principalmente, do filho mais novo – o Rui - na altura com cinco ou seis anos, de pele muito branca e uma farta cabeleira loura, com o cabelo caído sobre os ombros e uma franja muito certinha a tocar as sobrancelhas. Era mesmo lindo o rapaz.
A família vivia no r/ch direito do prédio que fica mesmo aqui ao lado do meu.
Aparentemente, viviam com algumas dificuldades, mas lá se iam arranjando, até que um certo dia, ao regressarmos do funeral do meu vizinho do r/ch. direito, que morreu de repente, o pai do Rui sentiu-se mal e morreu de repente também... no mesmo dia.
No dia seguinte fui ao funeral dele com uma imensa tristeza, pois pensava: como é que a Dª Rita, que nem emprego tem... – estava em casa a tomar conta dos quatro filhos - iria conseguir viver daí em diante.
Logo, logo, deixaram deixaram de pagar a prestação da casa, que como a minha, era do Fundo de Fomento da Habitação e que segundo o contrato ao fim de vinte e cinco anos, estaria paga e passaria para a posse dos arrendatários.
Entretanto, não sei bem como… a Dª. Rita e o filho mais velho, o Carlos, começaram a trazer para casa, de uma firma, calças de homem para cozer; portanto passaram a fazer trabalho de alfaiate.
Fizeram isso durante muito tempo, e eu lembro-me de ver o Carlos apanhar o autocarro comigo, com um monte de calças prontas a entregar, muito direitinhas dobradas no braço esquerdo tapadas com uma toalha branca.
Entretanto a Fernanda, a filha de 14 anos, namorava um rapazito da rua de trás…e ficou grávida; nasceu o Márinho, que a avó criou.
Passado algum tempo a Fernanda teve outro menino - o Tiago – e depois nasceu o Fábio e depois nasceu a Sara, cada um de um pai diferente.
E todos foram criados pela avó Rita que continuava a cuidar daquela gente toda e a costurar montes de calças, para sobreviver.
Um dia, um triste dia… o Carlos, o filho mais velho, ficou muito doente e morreu. Tinha apenas vinte e poucos anos.
E a Dª Rita continuou sózinha a coser calças, muitas calças, suportando e aguentando tudo isto, firme.
Entretanto, o Rui, o menino lindo da franja sobre os olhos, começou a andar com más companhias e começou a fazer roubos. Foi preso, foi muitas vezes preso.
O outro filho a seguir ao Rui, perdeu-se de amores por a jovem filha do proprietário de um carroussel, que andava de terra em terra pelas feiras. A mãe perdeu-lhe a pista, desapareceu. Não faço ideia se alguma vez voltou.Eu nunca mais o vi até hoje.
O neto Tiago, que tem menos dois anos que o meu Zé, foi desde bem pequenino visita da nossa casa; comia muitas vezes á nossa mesa e participava das orações de acção de graças. Foi tambem com o Zé a acampamentos Evangélicos e ao culto; e com o meu Zé jogou futebol das "Escolinhas"; quantas vezes eu os fui ver jogar nos vários campos aqui á volta de Sintra. O Tiagão (era assim que lhe chamavam)era muito bom a jogar futebol. Bem pequenito,quando ele levava a bola nos pés toda a gente gritava: Vai Tiagão, força, leva-a para a baliza! Eu própria gritei muitas vezes. Depois das "Escolinhas" ele ainda foi jogar nos Infantís de Mira - Sintra e depois já mais crescido no Estrela da Amadora. Depois, creio que deixou de jogar e foi pena, porque ele tinha muitas chances de vir a ser um bom jogador de futebol.
Eu afeiçoei-me de tal maneira ao miudo que se criou uma linda amizade entre nós e quando ele vem a Mira - Sintra, aí uma vez por ano, eu tenho imensa alegrir em falar com ele e abraçá-lo.
Há uns anos a esta parte, os filhos e os netos,da Dª Rita, já crescidos, começaram a ir um a um, trabalhar para Inglaterra. Foram todos. A Fernanda foi a última a ir.
A mãe, ficou cá sózinha, cansada e doente… muito, muito doente.
Estava constantemente a ser levada de urgência para o Hospital com falta de ar e problemas renais. Frágil muito frágil, mal conseguia caminhar.
Depois, deixei de a ver e reparei que a casa estava sempre fechada.
Então alguém me disse que ela tinha ido ter com os filhos e os netos á Inglaterra porque não tinha condições para viver aqui sózinha, pois por várias vezes provocou pequenos incêndios na cozinha,que assustaram bastante todos os moradores do prèdio.
Mas ela foi com a condição de voltar, ela queria voltar para a sua casa e acabar os seus dias por aqui.
E eu, a passar todos os dias por a casa dela; tenho que passar, é ao lado... e sempre a pensar a mesma coisa:
Como é que estará a Dª Rita; quando é que eu a vou voltar a ver… dava-me uma tamanha tristeza ver sempre tudo fechado... depois de tantos, tantos anos de vida a fervilhar por ali, com a casa cheia de gente.
Como eu gostava de voltar a ver a Dª Rita ali á Janela estender a roupa ou a chamar por os netos como antigamente.
Pois bem, hoje de manhã acordei muito feliz, alegre, a cantar um hino de louvor a Deus.
Como faço sempre quando acordo, abri a janela, olhei para o céu azul e sorrindo, saudei o meu Deus e Senhor, e agradeci-lhe a noite de descanso, o novo dia que me deu… e supliquei que ficasse comigo todo o dia e acompanhasse e protegesse os meus filhos e netos e, família, e irmãos em Cristo e amigos, e dei-lhe muitas graças por o seu Filho Jesus, ter morrido em meu lugar na cruz do Calvário.
Desviei os olhos do céu, olhei para a rua onde ouvi pessoas a falar, e vejo á porta do prédio do lado, dois carros da polícia, vários agentes, da Polícia de Segurança Pública e da Polícia Municipal, reparo que vão chegando carros, vários carros da Câmara de Sintra, e fiquei preocupada, pois pensei que tinha acontecido alguma desgraça.
Estava entretanto á espera da minha irmã, para irmos a Maceira cuidar do Jardim e da casa da mãe.
Quando ela chegou eu desci e fui espreitar á porta do prédio do lado para saber o que estava a acontecer por lá. È então que estupefacta e incrédula… me apercebo que está a ter lugar uma ordem de despejo da casa da Dª Rita.
Vejo arrombar a porta e entrarem os polícias e aquela gente toda lá para dentro, abrir as janelas e começar a carregar duas camionetas com tudo o que havia na casa da Dª Rita.
Eu não queria acreditar mas era verdade.
Como há tantos anos não pagavam a renda e já tinham vindo ali bater á porta dezenas de vezes e nunca estava ninguem... não havia outra alternativa, a casa da Dª Rita estava a ser despejada.
Olho e reconheço os móveis da sala. e as coisas pessoais dela,…os seus bibelots , etc. Levaram tudo: roupa que estava nas gavetas, móveis, louças, tachos e panelas, até o oleo de fritar que acabaram entornando nas escadas e no passeio,fotografias antigas e todas as recordações de uma vida.
Tudo quanto ela tinha se foi. E ela lá tão longe na Inglaterra sem poder reclamar , sem poder fazer nada.
Tudo foi levado para um depósito da Câmara Municipal de Sintra.
Entretanto quando eu ia entrar no carro, um jovem chama-me e pergunta-me o que está a acontecer. Era o Nuno, um jovem do prédio em frente, que também ele cresceu e brincou com o Rui, os irmãos e os meus filhos.
Quando se apercebe da realidade, diz-me: “Vou ligar para o Márinho (neto da D.ª Rita) para Inglaterra, para o informar do que está a acontecer. Eu disse: liga, Nuno, liga.
Já ia no carro quando me lembrei que deveria ter dito ao Nuno para dizer ao Márinho, que poupasse a avó e nãolhe dissesse nada do ocorrido, pois poderá ser-lhe fatal a notícia.
Soube depois, mais tarde, por uma vizinha da Dª Rita, que ela está tão doente que o médico lhe disse que ela não tem condições para aguentar a viagem de avião até Portugal.
Que triste fiquei! Quer isso dizer que “as coisas da Dª Rita", de toda uma vida…ficarão para sempre longe do seu alcance.
Possivelmente, ninguém as virá resgatar e serão provavelmente deitadas no lixo, ao fim de um certo tempo de armazenamento.
Todo o dia andei a pensar nisto e apoderou-se-me de mim uma tristeza imensa da qual ainda não recuperei.
Triste, muito triste, esta historia de vida de uma mulher, mãe de família,que tanto lutou e trabalhou e ao fim e ao cabo só teve dissabores e sofrimemto, tanto sofrimento!