Imagem da netO dia aproximava-se do fim.
Como habitualmente faço, fui caminhar um pouco, pois continuo a acreditar que o caminhar é um dos melhores exercícios físicos.
Convidei o meu filho Zé e ele acompanhou-me.
Fomos andando e conversando pois ambos apreciamos conversar.
Quando demos por nós, estávamos a chegar á estação de Mira-Sintra - Meleças.
Há ali um espaço excelente para caminhar, pois há largas faixas de rodagem com reduzido movimento, vários passeios, jardins, a Ribeira das Jardas e um belíssimo pinhal de centenários pinheiros mansos.
Ao caminharmos por um passeio no meio daquele espaço, apercebi-me da presença de um vulto, sentado de costas para nós, num murinho separador da faixa de rodagem mais á direita, que é a faixa mais usada por onde os carros entram e saem da estação.
Reparei nele e chamei a atenção do Zé, pelo simples facto de que vamos ali vezes sem conta e nunca vimos ninguém ali sentado.
Continuámos a andar até lá ao fundo e voltámos para trás.
Verificámos que o vulto permanecia imóvel no mesmo lugar.
Eu fiquei um pouco perplexa pois estava mesmo quase a anoitecer e tornava-se perigoso alguem estar ali naquele lugar á noite, pois a partir tde uma certa hora a estação e todo aquele espaço torna-se deserto e isolado.
Pensei: eu não posso ir-me embora sem ver o que se passa, pois poderá ser alguém que precise de ajuda.
O Zé ficou ali parado, e eu, suavemente, aproximei-me da pessoa em questão.Cheguei por trás dela e disse-lhe: Boa noite.
Ele não reagiu.
Disse-lhe novamente: Boa noite.
Ele então volveu a cabeça para o meu lado e olhou-me fixamente, sem proferir uma palavra.
Quando vi o seu rosto foi um choque terrível. Ele tinha a cara com várias feridas que sangravam, os lábios com golpes profundos que sangravam tambem, e um tumor negro na face direita, que lhe repuxava a pele e lhe dava um aspecto muito estranho.
Procurei conter -me e parecer o mais natural possível e disse-lhe:
Olhe que está quase a anoitecer e é melhor o senhor ir andando, porque rápidamente vai ficar escuro e o senhor não pode ficar aqui sòsinho neste lugar isolado.
Ele continuou a olhar-me, com um olhar profundamente triste, levou as mãos ao rosto e quando as retirou reparou que elas tinham sangue e isso deixou-o perturbado.
Sem dizer palavra, apoiou a testa nas mãos e assim ficou.
Eu voltei a dizer-lhe que estava a anoitecer e que ele não podia ficar ali. Voltou a fixar-me.
Eu perguntei-lhe: o senhor precisa de ajuda? Onde é que mora?
E ele disse qualquer coisa imperceptível, pois a sua voz era tão débil e o seu corpo estava tão magro e tão frágil, que depressa percebi que a voz seria assim mesmo.
Vestia um blusão de bombazina(num dia de muito calor) e as calças tinham lustro de tanta sugidade.
Mas o Homem tinha um ar fino, nobre, distinto.
Os poucos cabelos grisalhos que tinha estavam penteados, mas muito sujos.
Como ele não tomava uma decisão, eu pensei:
se ele se mantiver aqui eu telefono para a policia para o virem buscar e levar para algum lugar, não sei qual.
Mas, enquanto eu pensava isto, ele muito devagarinho levantou-se, pegou nos dois sacos de plástico, que pareciam pesados, que tinha ao lado, e começou a caminhar no sentido da saída da estação, ou seja, dirijiu-se para os lados da Tala.
Não voltou a olhar-me.
Quando se levantou perguntei-lhe novamente se precisava de ajuda, mas ele nada disse.
Eu fiquei ali parada, longo tempo, a vê-lo caminhar e a segui-lo com o olhar.
Não ia por o passeio, mas por a beirinha da faixa de rodagem, sempre a direito; e lá foi sem nunca olhar para trás, até eu o perder de vista.
O Zé, ali ao lado, assistiu a tudo isto, sem palavras. Vi que estava impressionado.
Impressionada e muito triste, tambem eu fiquei.
Não me sentia muito bem por não o ter acompanhado, e dise isso ao Zé, mas ele disse-me que eu deveria respeitar aquele homem, pois nada sabíamos a seu respeito.
Eu pensei que poderia muito bem ser uma daquelas pessoas das quais se escreve no jornal: "Desapareceu da sua residência..."
O Zè lembrou-me que talvez fosse isso sim, mas que talvez ele desaparecesse de casa por opção própria, por escolha, por ter talvez uma família que não o amasse e o aceitasse. Quem sabe?
Cá para mim, confesso que não fiquei de bem com a minha consciência, pois sinto que o deveria ter acompanhado sim, e ver onde morava, e se precisava de algum apoio ou alguma orientação médica ou social.
Não o quis fazer para não me intrometer na vida, e privacidade, e direitos dele.
Mas será que fiz bem?
Em casa orei por ele, e chorei, chorei muito, porque creio que nenhum ser humano, em nenhum lugar do mundo, deve viver na situação que aquele homem vive.
Está errado. Profundamente errado.