Vasco Graça Moura |
lâmpada votiva
1. teve longa agonia a minha mãeteve longa agonia a minha mãe:
seu ser tornou-se um puro sofrimento
e a sua voz apenas um lamento
sombrio e lancinante, mas ninguém
podia fazer nada, era novembro,
levou-a o sol da tarde quando a face
lhe serenou, foi como se acordasse
outra espessura dela em mim. relembro
sombras e risos, coisas pequenas, nadas,
e horas graves da infância e idade adulta
que este silêncio oculta e desoculta
nessas pobres feições desfiguradas.
quanta canção perdida se procura,
quanta encontrada em lágrimas murmura.
2. e não queria ser vista e foi envolta
e não queria ser vista e foi envolta
num lençol branco em suas dobras leves,
pus junto dela algumas rosas breves
e a lembrança represa ficou solta
e foi à desfilada. De repente,
a minha mãe já não estava morta:
era o vulto que à noite se recorta
na luz do corredor, se está doente
algum de nós, a mão que pousa e traz
algum sossego à fronte, a voz que chama
para o almoço, ou nos tira da cama,
quem nos trata das roupas, ou nos faz,
bolos de anos e as malas, na partida,
e a quem a voz tremia à despedida
3. agora deu-se à terra o que é da terra
agora deu-se à terra o que é da terra
e as flores amontoam-se em sinal
de ser fugaz a vida, sobre a cal.
e enquanto cada dia desaferra,
com seu sopro bravio virão ventos
e as gaivotas, levando-lhe outras vozes,
uivos do mar, pios, metamorfoses,
nada ela escutará nesses momentos.
haverá fumo e fogo, deslembranças,
ecos, recordações, nuvens, ruídos,
outros cortejos tristes, recolhidos,
ali por perto hão-de brincar crianças
num jogo descuidado, um grupo vence-o.
mas fica a minha mãe posta em silêncio.
4. agora dorme e vai ficar assim
agora dorme e vai ficar assim,
imóvel e coberta. Já regressa
o carro que avançava tão depressa
na estrada por que vou e por que vim
às tantas da manhã, e tresnoitados
meus irmãos aguardavam-me à chegada,
sem esperança ou alegria, sem mais nada,
senão minutos tensos e contados.
depois os rituais, o respirar
tão a custo, os membros que se arqueiam
e distendem, e os vultos que rodeiam
a muda sombra vindo devagar.
beijei-lhe a fronte e fiz-lhe um leve afago:
do pouco que levei, tudo o que trago.
5. poderá ter morrido, ressuscita
poderá ter morrido, ressuscita
neste lugar humano, pobre fio
de água verbal que vai a medo, hesita,
e teme desmedir-se como um rio.
e muita coisa nele se derrama,
dita e não dita, pressentida, densas
aluviões, emaranhada trama
de obscuras raízes e presenças.
virão dias, semanas, meses, anos,
e os ciclos dos astros indiferentes,
mover-se-ão na mesma os oceanos
e as placas que sustentam continentes.
mola do mundo, o coração aviva
a chama desta lâmpada votiva.
Vasco Graça Moura, in 'Antologia Poética'
Portugal
3 Jan 1942 // 27 Abr 2014
Escritor/Poeta/Ensaísta/
6 comentários:
Olá querida Viviana!
Que bonito! Quanta ternura nestas tristes lembranças.
Tocante mesmo, pois também senti como meus estes pensamentos.(no meu caso sem rimas)
Beijinhos, e boa semana.E obrigada pela escolha de tão bonito post.
Dilita
Viva, Viviana
Há muito tempo que não parava e deixava sinal de vida, aqui no seu blogue.
Poderia dizer que deslembrado que eu tenho sido, talvez por também andar um tanto tresnoitado, disperso, cada vez com menos capacidade para gerir o tempo.
Ando muito tentado em voltar a concentrar-me no meu blogue, que o Facebook tem-me desencaminhado; a verdade é que através do FB também tenho reencontrado muitos familiares e amigos ...
Gosto muito de Vasco Graça Moura e de David Mourão-Ferreira, dois colossos da nossa Literatura contemporânea, ao mesmo tempo de sempre...
B espero que esteja bem,
António
Olá Viviana.
Um poema onde se nota alguma tristeza, mas que assim mesmo muito belo.
Viviana, boa noite, amiga.
Querida Dilita
Olá!
Também gosto muito dos poemas do saudoso Vasco Graça Moura.
Foi um grande homem.
Pena ter partido tão cedo.
Está a fazer um ano.
Prestei-lhe uma homenagem neste espaço.
Obrigada. boa amiga
Um abraço
Viviana
Olá,António
meu amigo "leiriense".
Eu, pelo seu blogue, vou-me apercebendo da sua vida super activa...
"Está em todas", como se costuma dizer.
Mas isso é bom, muito bom mesmo.
Continue.
Um forte abraço
e..por favor, saúde por mim, a linda Leiria e o "meu castelo".
Viviana
Querida Rosa
Olá "vóvó vaidosa"!
Como vai a Serena?
Espero que bem.
Sim, amiga, o poema encerra uma certa tristeza...mas é muito belo e muito profundo.
Tenha um lindo e abençoado dia
Um abraço
Viviana
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