O Escritor português Raul Brandão Fonte da imagem:pt.wikipedia.org |
Uma sugestão aos amigos que por aqui passarem:
Depois destes terríveis dias de angústia e sofrimento, em que o fogo devorou uma grande extensão de Portugal, sugiro que tirem algum tempo para ler este belíssimo texto de Raul Brandão, pois estou certa que vos fará bem...assim como o fez a mim.
É um pouco longo mas vale a pena investir algum tempo na sua leitura.
«Duas sombras têm acompanhado a minha vida e estão aqui a meu lado...Minha mãe gastou-se a sonhar, só nervos e paixão; viu cair por terra todos os seus sonhos. - e teimou em sonhar; atrevendo-se contra todo o universo! A realidade temerosa afastou-a sempre de si. Venceu-a. Deu-nos a vida a todos. Alimentou-nos do mesmo sonho que a devorou até ao final, sem medo da morte, como se a morte fosse a continuação natural da vida.. Foi dela que herdei a sensibilidade e o amor pelas árvores, pela água, e dela herdei também o meu sonho...Bastava que a bica do quintal deitasse menos para a minha mãe adoecer. Ficava horas, a olhar extasiada, o pouco musgo humedecido, donde escorria, vindo da escuridão, com um hálito de frescura, o fio azul infatigável que caía em baixo, desfeito em milhares de gotas liquidas que logo subiam à superfície reluzindo em bolhas iluminadas.Ás vezes íamos vê-la brotar do fundo da mina, e ansiosos e calados assistíamos na escuridão ao nascer misterioso da água borbulhando na madre e correndo logo na caleira de pedra. Quando mais tarde minei o monte, fi-lo com a mesma ansiedade. Ver na terra sequiosa e inútil escorrerem as primeiras gotas que lhe dão vida e a transformam é um dos espectáculos mais lindos que conheço. É criar.
De Verão, ao levantar-se muito cedo, o primeiro olhar da minha mãe era para a fonte, que se ia reduzindo, desde o jorro do Inverno que transborda ao fio de Setembro, deitado com aflição. Em Agosto secam os montes, em Setembro secam as fontes.
- Se secasse!...
De noite punha o ouvido à escuta - como me acontece ainda hoje a mim. No silêncio profundo aquela voz é extraordinária de frescura e pureza. Nenhuma outra me fala da mesma maneira. - nem a das folhas, nem a do vento -, nenhuma outra me fala tão baixinho e com tanto encanto. Ás vezes muda de tom - ás vezes, e por momentos, emudece. Secou. E lá torna a correr...
Plantou árvores até aos últimos dias - como eu as planto.
E, já prostrada, mantinha de pé a ilusão, e teimava em sonhar - como eu sonho até ao fim da vida. Foi tal o frenesi, o encanto, as lágrimas, que ainda hoje vivo da vida da minha mãe. Ás vezes sonhávamos juntos. Sentava-me ao pé dela e era capaz de estar assim horas perdidas. Ou, tendo corrido pelo quintal numa exaltação, ia direito ao alegrete desatava aos soluços com a cabeça no seu colo. Ela não me dizia palavra nem me estranhava sequer - talvez porque visse em mim reproduzida a mesma sensibilidade exagerada; só me passava a mão na cabeça, e àquele contacto ia serenando e chorando cada vez mais baixinho....
A Lua aparecia atrás dos montes, sobre a mais bela paisagem do Mundo - porque a paisagem mais bela é aquela em que fomos criados e que faz parte da nossa substância.
Há imagens tão delicadas, no fundo do meu ser, que tenho medo que desapareçam tocando-lhe. Apagaram-se a pouco e pouco. Melhor: transformaram-se pouco a pouco, mais desvanecidas e mais lindas, num fundo de auréola como certas figuras dos livros. Sinto-a doirada. Pura e doirada. Toda a matéria desapareceu, reduzida a fios de aranha.[...]
Foi ela que me falou pela primeira vez daquele pobre que costumava entrar pela porta dos desgraçados dentro, quando menos se espera, e se senta ao pé do lume.:- Assim andava o Senhor pelo mundo!... - E eu fugia para o fundo do quintal, para sonhar com Ele. Nunca mais deixei de amar a solidão nem de ver esse pobre extraordinário que me tem acompanhado até à velhice.
Porque será que todas as outras sombras vejo distintamente - e a minha mãe não? minha mãe é um fantasma de saudade, que lá está todas as noites sentada ao pé da bica. Não a separo desse fio, que a lua toca por momentos com o seu dedo molhado de branco - e que nasce para apagar a sede de todos com indiferença, mas que só fala aos que sabem amar...»
(Vale de Josafat - Memórias III)
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