Do livro - LEOMIL
Coisas ruíns
«Ainda não nascia a lua, quando acabou d´arroxar ambas as cargas.
Das bandas da Praça, na friura do escuro, chegavam gritos de cornetim e roncos de trompa, duma marcha de procissão que a música ensaiava. Cães atrevidos latiam nas quintãs da Picóta. E á noite, duma escuridade azulada e nédia, da carnás de pele de cabra acabada d´esfolar, toda picada d´estrelas, pesava, numa ameaça, cheia de silêncio e scismas, nos rebordos das serras que engamelam, por largo, o casario denegrido, colocado em lances de cobra p´lo cabeço da Vila.
A Rosa, em casa, mechia-se duma banda para a outra, nos apaparicos da partida, pondo a luzir as falisgas das paredes, em lampejos de lusicú, ora aqui, ora ali, consoante dentro andava com a candeia na mão.
- Que te não esqueça a cabaça. Olha se tem aguardente. - Disse-lhe o Zé, da rua, arrepiado.
E curvando-se, botou dois dedos ao nariz, assoou-se com força e sacudiu com força os mucos p´ra longe.
A música calara-se. No silêncio, o luzintir das estrelas aumentava a frialdade e o negrume. O sudeste, surrateiro, em subtis manejos d´espião à espera da palidez das horas da madrugada, dava golpes de gelo, ao virar das esquinas. E um burro novo roncou, tresmalhou écos, entre a Rapadinha e o Nicho.
- Ouves? O Miguel já lá vai. Vê se te aprontas - Tornou o Zé.
E, de seu vagar, ronceiro, foi meter um joelho à carga do cavalo, a endireitar o costal que puxava um quase nada p´r´á esquerda.
A porta da casa abriu-se; os fogachos do lume da lareira espalharam no escuro, sobre as lages poídas do balcão, tristonhos lumareus d´archotes num enterro; e a Rosa apareceu no patim, ainda sem chaile, a destemperar:
- Não sou capaz de dar com a cabaça! Um sumiço assim...Parece bruxêdo, carago!»
(António de Sèves - no livro - LEOMIL - página 193 - !921)
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