sábado, 26 de maio de 2018

O Jardim e a Noite - Um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen

Do meu jardim - o meu pé de lima-limão. Foto minha.

O JARDIM  E A NOITE

Atravessei o jardim solitário e sem lua,
Correndo ao vento pelos caminhos fora,
Para tentar como outrora.
Unir a minha alma à tua,
Ó grande noite solitária e sonhadora.

Entre os canteiros cercados de buxo,
Sorri à sombra tremendo de medo,
De joelhos na terra abri o repuxo,
E os meus gestos foram gestos de bruxedo.
Foram os gestos dessa encantação,
Que devia acordar do seu inquieto sono
A terra negra dos canteiros
E os meus sonhos sepultados
Vivos e inteiros.

Mas sob o peso dos narcisos floridos
Calou-se a terra,
E sob o peso dos frutos ressequidos
Do presente,
Calaram-se os meus sonhos perdidos.

Entre os canteiros cercados de buxo,
Enquanto subia e caía a água do repuxo,
Murmurei as palavras em que outrora
Para mim sempre existia
O gesto dum impulso.

Palavras que eu despi da sua literatura,
Para lhes dar a sua  forma primitiva e pura,
De fórmulas de magia.

Docemente a sonhar entre a folhagem
A noite solitária e pura
Continuou distante e inatingível
Sem me deixar penetrar no seu segredo.
E eu senti quebrar-se, cair desfeita,
A minha ânsia carregada de impossivel,
Contra a sua harmonia perfeita.
 
Tomei nas minhas mãos a sombra escura
E embalei o silêncio nos meus ombros.
Tudo em minha  volta estava vivo
Mas nada pôde acordar dos seus escombros
O meu grande êxtase perdido.

Só o vento passou pesado e quente
E à sua volta todo o jardim cantou
E a água do tanque tremendo
Se maravilhou
Em círculos, longamente.

(Sophia de Mello Breyner Andresen - no livro - Obra Poética I)

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