Casualmente, encontrei em cima do louceiro da
cozinha, quando o limpava, um pequeno marcador de papel, a folha de
Janeiro de um daqueles pequenos calendários que habitualmente colocamos
na nossa secretária de trabalho.
Neste caso, foi o Jorge, meu marido, que ali o deixou.
Quando lhe peguei reparei no pequeno pensamento escrito:
"A alma exige coragem, vai exigindo cada vez mais coragem, até nos pedir toda a nossa coragem."
( Autor - Gabriel Magalhães)
Como "gostei" do pensamento, o passo seguinte foi pesquisar sobre o autor, e encontrei isto:
Gabriel Magalhães, professor de Literatura Espanhola na Universidade da
Beira Interior (Covilhã) e de Filologia Hispânica e Portuguesa na
cidade espanhola de Salamanca, é um profundo conhecedor das duas
culturas.
Tem vários livros publicados, entre eles ESPELHO MEU.
Oferecemos seguidamente alguns excertos de "Espelho meu", estreia de Gabriel Magalhães no campo da espiritualidade.
Levar Jesus a sério
Uma das coisas mais curiosas que acontece aos
cristãos é lerem os Evangelhos e relativizarem aquilo que foi por eles
lido. Dizem: «Isto é simbólico: não se deve entender à letra.» Ou então
afirmam: «Estas palavras do Senhor são exageradas. Exigem uma
santidade radical de que eu não sou capaz. Estava bem arranjado se me
comportasse deste modo!» E é como se o Novo Testamento se transformasse
numa hipérbole moral, num exagero da virtude, que um ser humano normal
e razoável não deverá pôr em prática.
Quando isto acontece, é terrível. Tornamo-nos uma
coisa dupla: passamos a ser pessoas falsas, enganadoras. Lemos uma
coisa, defendemos publicamente essa mesma coisa, mas depois fazemos
outra, procedendo de um modo oposto àquele que se configura nas nossas
convicções oficiais. Tornamo-nos, na verdade, uns grandes hipócritas.
Procedemos assim por «realismo»: porque o mundo não se compadece com os
«idealismos» evangélicos.
Contudo, quando começamos a avançar por este
caminho «pragmático», «calculista», quase sempre descobrimos que não
somos felizes, e que nunca mais encontraremos a paz. O tal nosso
«realismo» só nos conduz a anos e anos de angústia, de inquietação, de
tensa incerteza. De um modo geral, porém, mesmo que a sua infelicidade
seja evidente, os homens não costumam voltar atrás na sua ponderação
primeira, não confessam a si mesmos: «Se calhar, o caminho evangélico,
que parecia tão disparatado, seria aquele que me daria a felicidade.»
Quanto a mim, hoje em dia eu sei que isso é
assim: que devemos levar o Evangelho rigorosamente a sério; que devemos
incorporar nos nossos comportamentos diários aquilo que dizem as
palavras sagradas. Ao princípio, parecer-nos-á que nos estamos a atirar
de uma ponte para um vazio incerto, mas, com o tempo, a nossa
felicidade, a nossa serenidade, a nossa paz irá crescendo de um modo
intenso: maravilhoso e irreversível. (...)
Por conseguinte, o que Jesus nos diz, ao dar-nos
conselhos radicais, não é o que se costuma interpretar: «Sede palermas e
sofrei, sofrei estupidamente.» Não é nada disso. É precisamente o
contrário disso: «Sede felizes, tão felizes que possais chegar a um
ponto em que, confundidos com o Espírito, nada vos importem as ofensas
dos outros.» Deste modo, o Salvador tem razão: mais uma vez Ele tem
razão.
E aqui duas últimas reflexões se impõem.
Primeira: o ódio ou o ressentimento constituem sempre manifestações de
falta de fé. Na verdade, nós só acreditamos que alguém nos pode fazer
mal se pensarmos que Deus não nos ampara completamente. Se tivermos fé,
se nos sentirmos intensamente ajudados por Deus, o mal que o outro nos
procura fazer só desperta em nós piedade - e preocupação pela
infelicidade que, na maldade desse nosso irmão, se revela
Contudo, esta reação generosa e amante só é possível se
sentirmos, se tivermos a certeza da presença efetiva do amor de Deus
nos nossos dias. Se não tivermos essa certeza absoluta, já esse mal que
nos é feito nos parece perigoso. E essa sensação de perigo tem como
consequência o nascer do ódio e do ressentimento. Como não acreditamos
mesmo em Deus e no seu poder de amor, acreditamos então no poder do
mal, e no modo como esse poder pode ensombrar a nossa vida.
E é assim que o ódio nasce: como um
prolongamento, um eco no nosso interior do mal que nos é feito. Podemos
até dizer que o ódio que sentimos pelo mal é uma das maiores vitórias
do mal em nós. Preservar o nosso interior de qualquer reflexo do mal
que nos fazem deve constituir sempre a primeira preocupação da nossa
vida quando s enos deparam situações malignas.
Segunda reflexão: devemos, pois, levar Jesus a
sério, mas tendo alguma paciência connosco. Nem sempre somos capazes da
melhor atitude: por vezes, demoramos a instalar na nossa vida um
determinado comportamento. Mas, no fundo, nós estamos vivos
precisamente para fazermos esta aprendizagem. Nós estamos vivos
simplesmente para aprendermos a viver - e, quando essa aprendizagem
estiver concluída, teremos posto o pé na nossa eternidade. Viver é
isso: corrigirmo-nos pouco a pouco até que, na nossa brevidade, se
instale a nossa eternidade.
(Gabriel Magalhães)
In Espelho meu, ed. Paulinas
© SNPC |
05.02.13
( http://www.snpcultura.org/espelho_meu.htm)
Nota pessoal:
Já pedi ao meu filho "livreiro", o favor de me conseguir um exemplar.