segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Do livro - LEOMIL - de António de Séves

Do livro - LEOMIL

Coisas ruíns

«Ainda não nascia  a lua, quando acabou d´arroxar ambas as cargas.
Das bandas da Praça, na friura do escuro, chegavam gritos de cornetim e roncos de trompa, duma marcha de procissão que a música ensaiava. Cães atrevidos latiam  nas quintãs da  Picóta. E á noite, duma escuridade azulada e nédia,  da carnás de pele de cabra acabada d´esfolar, toda picada  d´estrelas, pesava, numa  ameaça, cheia de silêncio e scismas, nos rebordos das serras  que engamelam, por largo, o casario denegrido, colocado em lances  de cobra  p´lo  cabeço da  Vila.
A Rosa, em casa, mechia-se  duma banda para  a outra, nos apaparicos da partida,  pondo a luzir as falisgas das paredes, em lampejos  de lusicú, ora aqui, ora ali, consoante dentro andava com a candeia na mão.
 - Que te não esqueça a cabaça. Olha se tem  aguardente. - Disse-lhe o Zé, da rua, arrepiado.
E curvando-se, botou dois dedos ao nariz, assoou-se com força e sacudiu com força os mucos  p´ra longe.
 A música calara-se. No silêncio, o luzintir das estrelas aumentava a frialdade e o negrume. O sudeste, surrateiro, em subtis manejos d´espião à espera da palidez das horas da madrugada, dava golpes de gelo, ao virar das esquinas. E um burro novo roncou, tresmalhou écos, entre a Rapadinha e o Nicho.
 - Ouves? O Miguel já lá vai. Vê se te aprontas - Tornou o  Zé.
     E, de seu vagar,  ronceiro, foi meter um joelho à carga do cavalo, a endireitar  o costal que puxava um quase nada p´r´á esquerda.
A porta da casa abriu-se; os fogachos do lume da lareira espalharam no escuro, sobre as lages poídas do balcão, tristonhos lumareus d´archotes num enterro; e a Rosa apareceu no patim, ainda sem chaile, a destemperar:
 - Não sou capaz de dar com a cabaça! Um sumiço assim...Parece bruxêdo, carago!»
  (António de Sèves - no livro - LEOMIL - página 193 - !921)

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