segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Recordações do Tear




No tempo em que eu cresci, ou seja, nos idos quarenta... exceptuando os filhos dos remediados e os ricos, as crianças eram introduzidas muito cedo no mundo do trabalho e eu não fui excepção.
Um dia talvez vos conte qual foi o meu primeiro trabalho e o segundo, porém hoje vou falar-vos do terceiro.
Mas antes, e para situar o acontecimento, é preciso dizer que no período de tempo que vivi na Argentina, ou seja, nos meus primeiros quatro anos de vida, tínhamos uma vida farta e bonita ao ponto de a minha mãe me dar banho em leite para a pele ficar mais linda.
Foi depois,em 1944, quando o meu pai decidiu que era altura de vir a Portugal visitar os neus avós, que apanhámos o período da guerra e quando quisemos regressar á nossa chácara não o podemos fazer.

Aí então as coisas complicaram-se e de uma situação de fartura entrámos num tempo de dificuldades que se prolongou demasiado.
Eu era boa aluna na escola primária. Tenho ali o meu diploma que diz que acabei o ensino primário com 16 valores - Muito Bom.
Eu queria mesmo era continuar a estudar mas dadas as circunstâncias de vida não o pude fazer e aí, entrei imdiatamente no mundo do trabalho dos adultos.
Fui para o meu terceiro trabalho - o Tear - aos aos doze anos.
O Tear situava-se na estação de Leiria bem perto da minha escola primária.Pertencia ao senhor Manuel e á menina Angelina, um casal na casa dos quarenta,extremamente católicos que eram de perto de Fátima; ele do Juncal e ela da Castanheira.
O Juncal e a Castanheira eram as zonas originárias deste tipo de Teares, até aos dias de hoje,segundo pesquisei na nete. Tanto quanto sei estas alcofas não são feitos em qualquer outro sítio do País.

Para alem da profissão de alfaiates, eles tiham um Tear onde se faziam alcofas e carpetes de junco.(plantas que crescem em lugares húmidos)
O meu trabalho constava do seguinte:
Escolher o junco, o que correspondia a passar pelas mãos um a um, rejeitando os que não estavam em condições de serem usados.
Depois, atar os juncos em molhos pequenos e ir colocá-los a corar no tonel do enxofre, para ficar bem amarelinho.Ficava lá cerca de 24 horas fechado colocado á volta do tonel que tinha no fundo, bem no meio, um prato com enxofre a arder. Era o fumo do enxofre que o fazia amarelinho.
Conhecem o cheiro do enxofre a arder? Eu conheço muito bem! Dizem que é esse o cheiro do inferno! Claro que se trata de uma superstição apenas.O cheiro do inferno ninguem o conhece,
Só sei que quando tirava a tampa do tonel para tirar o junco... eu tinha que colocar a cabeça de lado e nem pensar em respirar aquele cheiro, pois seria "tosse de meia - noite" como se costuma dizer.

O passo seguinte era urdir o Tear, ou seja, colocar todos aqueles fios nos sítios certos, ficando assim pronto a funcionar. Uma vez urdido era hora de começar a tecer as alcofas cujos desenhos e cores variavam muito. Logo no começo do dia era-nos dito qual o desenho que deveria ser feito.

O sr. Manuel é que se encarregava de tingir o junco nas várias cores.
Para tecer, usávamos os dois primeiros dedos da "mão esquerda"... que teciam,entrando e saindo rápidamente entre os fios, fazendo um ruído característico que ainda hoje tão bem recordo. A mão direita segurava um molhnho de juncos.
Era preciso tecer rápido, muito rápido, para conseguir completar um Tear num dia de trabalho, que correspondia a um período das 8 ás 18 horas, com uma hora para ir almoçar a casa.

Éramos uma cinco ou seis tecedeiras, raparigas novas que ocupávamos o tempo a cantar cantigas populares e a falar de namorados...

Como eu era a única crente Evangélica Baptista - "protestante" - para eles," o que era uma coisa horrível, "coisas do diabo"... as colegas e os patrões levavam o tempo a "atazanar-me a cabeça" e a procurarem deixar-me ficar mal, rindo e "gozando" e até iam ao ponto de inventar coisas, como por exemplo: que na minha Igreja se tinha que entrar e sair "às arrecuas" e que estava escrito nas nossas Bíblias que Jesus não tinha ressuscitado, imaginem! Quando para nós a Ressurreição é o acntecimento mais importante da Escritura.
Porém, era interessante que eu já na altura lhe citava as escrituras que lia e estudava diariamente, deixando-os muitas vezes desarmados. Mas penei bastante com isso.Que Deus lhes perdoe o mal que me fizeram.
Naquele tempo, da euforia de Fátima que era recente, os evangélicos eram bastante maltratados pelos católicos que eram a maioria como até hoje. Recordo-me que eu era olhada como um bicho raro e era marginalizada até certo ponto,porém a minha fé em Cristo já era firme e Ele ajudavsa-me a enfrentar a situação.
Recordo-me que no percurso de casa até lá, eu ia sempre orando, falando com Deus, pedindo-lhe sabedoria para responder com mansidão e paciência ás provocações que iria enfrentar.

Bom, mas voltemos ao Tear.
Uma vez tecidas as sete alcofas, era altura de cortar o Tear separando individualmente as cestas, e depois atar muito bem atados todos aqueles fios.
Muitas vezes, enquanto eu escolhia o junco para o dia seguinte, era o meu irmão de 9 anos que me ia lá ajudar a atar os fios.
Os "cantos" eram feitos geralmente pelo sr. Manuel.
Era tambem ele e os filhos - o Quim e o João Manuel - que coziam os cantos e depois finalmente o sr. Manuel colocava as pégas feitas em vime retorcido, nas asas,e estava pronta a alcofa para ser levada para o mercado e ser vendida.

Falta só dizer quanto é que eu ganhava por cada Tear de sete alcofas, e por tudo o resto que fazia em 9 horas de trabalho e ainda o trabalho do meu irmão... Tanto como sete escudos, ou seja um escudo por cada alcofa, que depois era vendida, não sei bem por quanto... mas por muito mais do que isso.
Trabalhei lá uns dois anos e depois fui para outro trabalho muito diferente.

Há umas semanas atrás fomos passar o dia a Torres Vedras e quando passava na rua e olhava as montras vi á venda alcofas iguais ás que eu fiz, ainda os mesmos desenhos, as mesmas cores, tudo tudo igualzinho. Não resisti, entrei e comprei uma pequenina para usar quando vou á rua e preciso de levar apenas poucas coisas como o telemovel, as chaves e coisas assim
Não imagimam o sucesso que tem feito a minha alcofinha! Toda a gente quer ter uma igual.

21 comentários:

Maria disse...

Que engraçado, não é que eu pensava que estas alcofas (também do meu tempo de criança) eram feitas só manualmente, tal como os cestos de vime?
Bom, sempre a aprender!
Eram tempos com uma beleza tão diferente...

Mas, o que mais chamou a minha atenção nesta recordação, foi o aspecto religioso.
Vulgarmente ouço (um jovem professor da EBD, novo na idade e sem antecedentes de fé na família) que em Portugal não sabemos o que é diferença e perseguição religiosa (etc.). Eu, que na infância também fui o alvo preferencial do padre que ia à escola onde eu era a única evangélica (também já escrevi acerca disso), pergunto: afinal o que é perseguição religiosa? Além disso, lembro sempre o irmão Arduino e outros tantos..., afinal o que é perseguição religiosa, é preciso morrer em masmorras?

Aqui fica a minha homenagem aos resistentes.
E, para não fugir ao tema, dizer que acho as alcofas muito bonitas.

Um abraço e Shalom!
Mimi

bete p.silva disse...

Que belos trabalhos. E que bela historinha!

Viviana, adoraria que as pessoas blogueiras se pusessem a contar suas hístórias como você faz.

Ana Maria disse...

Adorei os artesanatos, pois amo trabalhar com eles. Tenho um pequeno Atelier de tapetes, colchas de retalhos e capas de almofadas.
Fiquei hipnotizada com toda beleza.
Tenha uma ótima segunda.
Bjs!

* O Cantinho da Lia * disse...

Eu também queria uma dessas...
Sabe que gosto muito de trabalho manuais...Eu faço bordado em ponto cruz, mas só motivos infantis...Tipo, toalhinhas de bebê, quadrinhos, bordados para cobrir potes...Tenho lá em casa um muito lindo, que fiz três patinhos, todos de chapeuzinhos...e fiz o mesmo motivo pra cobrir a tampa do pote, e também fiz as barras com passa fita...ficaram lindos...

muito legal sua história,

beijos Viviana, fique com Deus.

Pelos caminhos da vida. disse...

Gostei dessa postagem amiga,atráves dela fiquei sabendo mais de vc,do seu trabalho no tear,continue contando mais sobre vc.
Ficou lindo os selinhos na página sua.
Um gde abraço amiga.

beijooo.

Maria João disse...

Fazem-me lembrar a minha infância... Que saudades!


beijos em Cristo e Maria

Rosa disse...

Olá Viviana
É natural que gostem da sua alcofinha,
eu também gosto, são lindas.
Ainda bem que as vamos vendo pelo menos nas feiras de artesanato.
Lindas peças, principalmente porque saem das próprias mãos.
Giras :)

Boa noite Viviana
Beijos
Beijos também para a Esperança, e que tudo lhe continue a correr bem.

R.I.

Viviana disse...

Olá querida Mimi,

Pois, deve lembrar-se bem destas alcofas!

Imocionei-me quando falou do irmão Arduíno.

eu sou uma das que louvo a Deus pela sua fidelidade e testemunho.

Procuro que o seu exemplo não seja esquecido.

Um dia destes, querendo Deus, postarei aqui sobre ele.

Tenha uma boa noite
Um beijinho
Viviana

Viviana disse...

Olá querida Bete,

Como já viu, a pouco e pouco vou partilhando "cenas" da minha história de vida.

E acho muio bom poder fazê-lo.

Um abraço
viviana

Viviana disse...

Olá querida ana Maria,

Imagino como deve ser lindo esse seu "pequeno atelier"...

E não é que a minha amiga tem todo o aspecto de quem tem habilidade e sensibilidade para essas artes!?

Um beijo e uma boa moite
Viviana

Viviana disse...

Olá Lia linda,

Então faz ponto Cruz?

Eu gosto imenso desse tipo de trabalhos.

Tenho uma sobrinha chamada Raquel, de 23 anos. que já fez tambem muitas coisas bonitas!

Algumas ela ofereceu para mim.

Um beijo Viviana

Viviana disse...

Olá Ana linda,

Então gostou da histórinha?

Digamos que são pequenos trechos de uma já longa caminhada, onde tantas coisas têm tido lugar...

Sim, os selinhos ficaram muito bem.

obrigada.
um beijo

viviana

Viviana disse...

Olá querida Maria João,

São estas coisas simples que por vezes marcam a nossa vida.

Mas que são lindas são!

Um abraço
Viviana

Viviana disse...

olá querida Rosa,

Sim, creio que já não se vêm por aí tantas á venda como antigamente.

Ando com um desejo de um dia destes ir ao Juncal e procurar um Tear para matar saudades.

Afinal não é nada impossível!

Um beijo e uma boa noite
Viviana

Anabela disse...

Esta história ainda não conhecia.
Depois de a ler só me apetece mandar-lhe beijinhos e abraços, nada mais...
Anabela

Viviana disse...

Olá querida Anabela,

Pois é, parece que nunca tínhamos falado sobre isto...

Quanta coisa há na nossa vida!

Umas mais lembradas, outras mais esquecidas.

Mas foi com tudo isto...que eu fiquei a pessoa que sou!

Obrigada pelos seus beijinhos e abraços, sensibilizaram-me muito.

Tenha um bom dia

Beijinhos para todos nessa linda família.
Viviana

carmen disse...

Viviana, achei lindas estas alcofas... parecem um pouco o artesanato que eu via em Minas Gerais... só que lá eram feitas com palha de milho enrolada, algumas tingidas e eram tecidas ao redor de um molde de madeira... Lembrou a minha infância quando visitava Caxambu, a terra natal do meu pai...

Mas, afinal, o que é alcofa??? Nunca ouvi esta palavra aqui no Brasil... uma bolsa? Qual a diferença
Bjs

Viviana disse...

olá querida Carmen,

São na verdade, bonitas as alcofas.

Enquanto um cesto é geralmente feito de material duro, resistente, a alcofa digamos que é tambem um cesto mas flexível, porque é feito com material mole.

Aqui em Portugal este tipo de cestos flexíveis, tambem se podem chamar "ceiras" (ainda pior).

Tenha uma boa noite
Um abraço
Viviana

Rosa Silvestre disse...

Olá, quando cheguei a Portugal nos anos 70, a alcofa era ainda muito popular. Também tenho uma...
Abraço, RS.

Viviana disse...

Olá Rosa,

Sim, nessa altura as alcofas eram ainda bastante populares.

Creio que hoje, embora ainda se vejam por aí á venda, dá.me a ideia que se vêm menos.

Uma boa noite para si
Um beijo
Viviana

Solange disse...

Como compro uma bolsa de palha como essa, linda